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CIÊNCIA NÃO
CIENTIFICA:
ASPECTOS MORAIS (ÉTICOS) DA VIVISSECÇÃO (1)
DRA. ANNA KINGSFORD
Os apologistas da prática da vivissecçao parecem pensar
que o desejo de conhecimento é em si mesmo suficiente para justificar todas as
crueldades e injustiças que se possa imaginar. Eles não parecem reconhecer o
fato de que todos os ramos da pesquisa intelectual tem os seus limites
éticos, e que a busca do prazer, da riqueza, do poder, ou de
conhecimento, em um estado civilizado, não deve nunca ter a liberdade para
afrontar a justiça ou a lei da humanidade.
Nos antigos mistérios religiosos de todas as nações do
mundo, diz-se que a queda do homem segue-se quando ele sacrifica a obediência
aos preceitos éticos ao desejo intelectual de saber. Ah, é uma
verdade primordial e profunda, e por essa razão encontra seu lugar nos capítulos
iniciais do Livro oculto. Há certos meios de adquirir conhecimento que o homem
não pode fazer uso sem comprometer seu lugar na Ordem Divina.
Sabemos bem que existem muitas práticas que são
extremamente rentáveis em seus resultados, mas que não são legítimas, e que a
civilização não tolera.
Em tempos antigos vidas humanas foram sacrificados aos
interesses das artes plásticas. Conta-se que um certo pintor célebre, querendo
capturar os efeitos da morte violenta, fez com que um escravo negro fosse
decapitado em seu estúdio; e que outro artista, famoso pelo talento que ele
mostrou nos interesses da Igreja, crucificou um jovem infeliz a fim de garantir
um modelo fiel para uma peça a ser colocada sobre um altar com a representação
do Cristo expirando.
Tais atos como esses não estão na categoria de práticas
legítimas, qualquer que seja o valor artístico ou outro derivado dos seus
resultados, e o mesmo pode ser dito de muitas outras atividades que constituem
tantas ciências inventadas pelo homem para enriquecer, para se divertir, ou para
engrandecer a si mesmo, mas que são, pelo consenso da opinião
moderna, repudiadas e ilegais.
É necessário que os homens entendam que o mero apelo de
estar servindo aos interesses da “ciência” é insuficiente como justificativa
para as ações humanas. Há ciências de natureza legítima e civilizada, tendendo à
luz, à sabedoria e à justiça, e há outras que não são nem legítimas, nem
civilizadas, e cujos resultados só podem terminar no embotamento do sentimento,
na negação da humanidade, e na destruição da verdadeira ciência e da verdadeira
civilização. Os progressos realizados pela vivissecção são avanços no caminho da
queda, do retrocesso.
E aqui somos levados a olhar diretamente para o fato de
que a escola em favor da vivissecção é pré-eminentemente a escola materialista e
ateística, enquanto a escola de pensamento espiritualista está, pela própria
natureza de sua filosofia, em oposição à vivissecção. (2)
O materialista não tem uma noção profunda ou fundamental
de Justiça. Para ele tudo é vago, relativo, inexplicável. Ele está familiarizado
apenas com partículas, átomos físicos, elementos químicos, protoplasma e a
teoria da evolução das formas sem um objetivo e sem uma ordem maior. Em sua
opinião existe apenas uma força cega agindo no meio da escuridão.
Consequentemente, a ética [e a moralidade] não é para ele
uma qualidade determinada e positiva, tendo sua origem na divina e inviolável
Mente que dirige e domina toda a manifestação material, mas é apenas uma questão
de hábito e convenções humanas, diferindo de acordo com o momento histórico, o
local e a raça [cultura] em questão.
O homem que adota esse ponto de vista da ética e da
moralidade aceita, obviamente, o lei civil como o único árbitro da ação, e vê o
comportamento como repreensível, ou o inverso, de acordo com a luz com a qual
ele é visto por sua própria nação e época. Os sentimentos – tais como honra,
justiça, coragem, compaixão, amor e lealdade – são para ele apenas
idiossincrasias, que variam de acordo com tal e tal temperamento e que dependem
para sua manifestação e desenvolvimento de causas físicas e acidentais.
Naturalmente, então, ele ri dos apelos aos sentimentos, e
se orgulha de ser inatingível aos “ataques histéricos” de “fanáticos sensíveis e
mentes fracas”. Quando ele diz isso, entre outras coisas, ele simplesmente está
dizendo que as palavras “compaixão” e “justiça” não têm nenhum sentido profundo
para ele. Há somente uma única coisa no mundo que lhe parece digna de ser
desejada e alcançada, e essa coisa é o conhecimento – o conhecimento sempre, e
antes de todas as coisas, sem qualquer restrição ou limitação aos meios
empregados na sua consecução.
O materialista não entende que a Fonte e Substância de
cada série de fenômenos materiais e físicos, cuja origem ele procura tão
ansiosamente interpretar, é igualmente a Causa necessária da evolução que
produziu a humanidade, cuja característica distintiva e cujo apanágio é a sua
natureza ética ou moral. Pensar o contrário seria criar confusão
ilógica e absurda entre ciência e ética ou moralidade, opondo o intelecto e os
interesses intelectuais à justiça e aos interesses do ser psico-espiritual.
Desse modo é gerada a inevitável negação da unidade
filosófica.
Mas não é coisa incomum ouvir partidários da vivissecção
enfrentarem à acusação de injustiça e imoralidade feita contra a prática da
vivissecção com a resposta que é um trabalho do mais elevado mérito intrínseco,
porque tem por objetivo o bem-estar da humanidade.
Vamos parar e considerar o que se entende por “bem-estar
da humanidade”. Qual é o significado da palavra “humanidade”, tantas vezes usada,
tão pouco compreendida? Para a escola materialista e vivisseccionista, sabemos
muito bem, o que importa da humanidade não é nada mais do que a forma física
especial de um animal pertencente à família dos macacos, uma criatura que possui
tal e tal conformação de circunvoluções cerebrais, de esqueleto e de órgãos. É o
corpo, a forma física, o que constitui a humanidade, e isso é tudo.
Mas para a escola espiritualista de pensamento, a
humanidade significa a manifestação de certas qualidades e princípios que não
encontram expressão entre os seres irresponsáveis – uma condição que se ergue
acima da animalidade em virtude de uma especial capacidade ética ou de
moralidade.
Consequentemente, mesmo que fosse verdade (o que não é)
que a vida humana física pudesse ser salva, e vantagens corporais obtidas por
meio de práticas cruéis e tirânicas, tais práticas ainda seriam, do ponto de
vista humano, completamente injustificáveis. A raça humana não pode ser salva ou
enriquecida por atos que destroem e roubam a humanidade. A vida física e a saúde
dos indivíduos seriam de forma demasiadamente cara conservadas, ou compradas,
pelo sacrifício das altas qualidades que, tão somente elas, constituem a
superioridade do homem sobre todas as outras criaturas.
Os campeões da vivissecção exigem o rebaixamento do
padrão moral da nossa raça ao nível do instinto primitivo de existência
puramente animal – a preservação do corpo a qualquer custo. Tal submissão
implicaria na destruição do que é infinitamente mais precioso do que a nossa
vida física – daquilo que dá a essa vida todo o seu valor e toda a sua glória –
a dignidade do sentimento humano, e o privilégio da responsabilidade.
O que se diria de qualquer pessoa que, estando doente ou
com dor, fizesse com que uma quantidade de animais altamente sensíveis fossem
torturados por horas ou dias em sua presença, na remota possibilidade de, desse
modo, descobrir algum meio de alívio para sua própria enfermidade? Quem entre
nós, ouvindo a respeito de um ato como esse, não diria que um homem como esse
não seria digno de ser salvo? E por que razão os motivos de todo um povo que age
assim – ao aceitar as práticas da vivissecção como o meio de curar as suas
doenças físicas – deveriam ser considerados mais dignos ou respeitáveis do que
os motivos daquele indivíduo?
Não pode haver senão uma resposta. A raça humana, uma vez
destituída de todos os atributos que, tão somente os quais, a enriquecem e a
elevam, não tem direito a nenhuma reivindicação de soberania sobre os animais, e
a sua salvação não pode de modo algum beneficiar o mundo.
Pois o rei injusto não é mais um rei, mas um tirano.
A vivissecção tem sobre suas mãos o sangue da violência e
de abuso da força. Nenhum homem deveria buscar o alívio de seu sofrimento ou o
avanço de seu poder ao custo das agonias de seus irmãos menores, mesmo que tal
alívio ou avanço pudesse se provar realmente possível por esses meios. Mas
parece que alguns pesquisadores da escola moderna estão apenas ansiosos para
provar a nossa origem comum com os animais e, conseqüentemente, os laços de
fraternidade que nos ligam a eles, a fim de mais tranquilamente reivindicar o
direito de torturar e abusar deles.
Justificar as práticas da vivissecção porque é a “lei da
Natureza”, a exemplo dos hábitos de animais que vivem como predadores e pela
morte de outros, é buscar regular a conduta do ser mais elevado na sequência da
evolução pelos hábitos daqueles seres que estão mais abaixo na escala, e
rebaixar o código da ética e da moralidade humana ao nível daquele do lobo, do
tigre, ou qualquer outra criatura irresponsável e que possa causar danos.
Qual é a vantagem de ser um homem – de ser um “rei” – se
essa elevada classificação, esse título glorioso, não implicar nenhuma
superioridade em relação às naturezas menos refinadas e mais comuns nos animais
irresponsáveis? Qual é o sentido de todo o mistério do desenvolvimento e da
transmutação de formas que, de acordo com o ensino da ciência, ocuparam tantos
milhares de anos e tantas idades de evolução dolorosa, e tão somente por meio
dos quais nós, os homens, ganhamos a nossa majestade de força moral, e de
responsabilidade, se ao seguirmos os ditames dos que defendem a vivissecção
devemos abandonar nosso privilégio real, e afundar novamente na lama, ao lado do
último e mais obscuro de nossos vassalos?
Não! Desceríamos a um nível menor ainda do que eles. Pois
a “luta pela sobrevivência” entre os seres irresponsáveis, sobre a qual os
vivisseccionistas falam tanto, raramente implica tortura, mas apenas a morte. A
reivindicação do praticante da vivissecção é pelo direito de infligir tortura,
na qual apenas muito poucos animais, e esses os mais ferozes e repugnantes,
parecem ter prazer. Se, então, for verdade que o homem tem o direito de matar
certos animais, como ele acredita ter o direito de matar certos homens, esse
direito não envolve a imposição de sofrimentos prolongados e horríveis. Hoje em
dia, em países civilizados, alguns criminosos são condenados à morte, mas nunca
às chamas, nunca à roda de tortura ou ao calabouço escuro. Não temos o direito
de infligir aos animais inocentes tormentos que a piedade nos proíbe de submeter
homens culpados.
A força que deve dominar o mundo não é a força física,
nem mesmo força puramente intelectual; mas é, acima e além de todas as outras, a
força ética, moral e filosófica, que é a única que diferencia o homem da besta e
distingue o ser civilizado do bárbaro.
Na verdade, a glória distintiva da humanidade baseia-se
nos sentimentos – aquelas qualidades divinas que sempre inspiraram todas as
nobres e dignas ações de nossa raça, e que são em todos os lugares reconhecidas
como a herança mais preciosa da humanidade.
É, provavelmente, porque as crenças do materialismo
abafam os sentimentos de seus seguidores que eles não conseguem perceber quão
inapropriadas são muitas das comparações feitas entre as práticas que defendem e
outras reconhecidas como úteis e necessárias para o Estado. Um argumento
favorito é aquele que compara o ofício do vivisseccionista com a profissão do
soldado. Mas o que é mais fácil do que ver que a mera emocionalidade aqui tem um
lugar tremendamente importante, e que há toda a diferença do mundo entre a
coragem que entrega a si mesmo, por sua própria vontade ao perigo e à morte, e a
covardia que, na comodidade de sua casa, maltrata e martiriza criaturas sem voz
e inofensivas.
Onde está a analogia entre o laboratório vivisseccionista,
com as suas vítimas amordaçadas, amarradas e tremendo, postas à morte a sangue
frio, e o campo de batalha, onde cada homem, de cada exército em choque, luta
por seu lar e sua pátria, sob a inspiração do entusiasmo, da ambição ou do
desejo de renome?
Também não há qualquer semelhança entre as práticas de
vivissecção e os grandes empreendimentos da civilização, como a engenharia, a
exploração de mares desconhecidos, e empreendimentos semelhantes de natureza
perigosa, através dos quais se tem procurado justificar a tortura científica de
animais; pois esses animais não se dedicam voluntariamente ao sacrifício. Homens
que tomam parte em obras difíceis de construção, aventureiros que atravessam as
vastidões desoladas ou se envolvem em outras empresas perigosas, são voluntários
que seguem os interesses de sua própria satisfação ou de seus benefícios
pessoais, aceitando todos os riscos envolvidos.
Há um total contraste entre o sacrifício de si mesmo para
o bem dos outros e o sacrifício forçado de outros para o bem de si mesmo. O
primeiro é divino, o segundo é infernal. E a vivissecção representa um
sacrifício desse último tipo.
Além disso, como já foi dito, a morte não é tortura.
Lembremo-nos que o direito de vivissecção difere de todos os outros direitos
assumidos pelos homens sobre os animais, por sua natureza peculiar, e que os
seus defensores, se não totalmente ilógicos ou ignorantes, reivindicam a
licitude de causar, não mortes violentas, nem dores medianas apenas, mas agonias
horríveis e prolongadas, como a do cão paralizado pelo curare, sendo cortado em
pedaços, pouco a pouco, e agonizando lentamente, hora após hora, no silêncio e
na escuridão da noite – morrendo em tormentos no laboratório de Paul Bert, o
moralista!
É inútil apelar para os próprios vivisseccionistas contra
as crueldades perpetradas diariamente em suas câmaras de horror. Antigamente,
quando os sacerdotes da Igreja medieval queimavam e torturavam outros homens
para a salvação de almas, sob os auspícios do Santo Ofício, não foi para os
decanos eminentes e prelados da hierarquia sagrada que o mundo dirigiu-se a fim
de obter a abolição da Inquisição e de suas práticas infames. Os sacerdotes da
religião da Idade Média, como os sacerdotes da ciência em nossos dias, encontram
frases bonitas, com as quais se defendem como um grupo de homens escrupulosos e
desinteressados. No entanto, a questão entre a Igreja e o mundo foi decidida
pelos leigos contra os membros da corporação eclesiástica, e ainda nunca se
encontrou razão para lamentar o fim da fogueira, da roda de tortura e do
calabouço.
A ciência baseada na tortura não pode ser mais verdadeira
ciência do que uma religião baseada na tortura pode ser verdadeira religião. É
uma nova Reforma que necessitamos – mas desta vez no domínio da ciência!
No demais, os instrumentos utilizados em nossos
laboratórios de vivissecção são muito semelhantes aos dos tempos medievais. O
arsenal moderno é tão completo como foi aquele dos dias de Torquemada, ou Isabel
de Espanha – agora o cão sem fala e inocente substitui o judeu ou o herege, e
animais que o homem julga seus inferiores são atados e torturados, com a
esperança de extorquir-lhes o segredo da vida, na ignorância cega acerca do fato
que a Natureza, insultada e submetida a agonias, responde como as vítimas
humanas na roda de tortura, isto é, responde mais frequentemente com uma mentira
do que com a verdade.
Tentativas têm sido feitas repetidas vezes para dissuadir
os anti-vivisseccionistas da cruzada que assumiram, chamando a sua atenção e do
público em geral, para outros abusos mais ou menos graves, com a pergunta: “Por
que vocês que são pessoas tão bondosas não se ocupam com a reforma das práticas
cruéis dos tropeiros, dos carroceiros, dos caçadores, dos homem dos matadouros,
e assim por diante? Por que não tentam consolar a miséria que reina em todos os
lugares fora do laboratório de vivissecção, antes de pensarem em atacar os
métodos de homens de ciência?”
A tudo isto nós respondemos que, de fato, nos ocupamos o
mais vigorosamente que podemos com todas essas questões, mas que todos esses
esforços estão paralisados pelo fato de que não só é a vivissecção, por sua
própria natureza, a mais cruel de todas as crueldades e, portanto, a cabeça e a
mais frontal de todas as ofensas, mas que ela é, praticamente única entre todas
as crueldades, protegida pela legislação do Estado, a despeito do fato de que
outros barbarismos menores sejam oficialmente condenados. Enquanto o
princípio da crueldade for, assim, incentivado e mantido vivo pela lei,
nas mais altas esferas da ciência, todas as tentativas para extirpar crueldades
menores em outros lugares devem se provar inúteis.
Como, por exemplo, podemos ensinar aos nossos filhos
deveres de humanidade para com os animais sem voz, quando, no curso de seus
estudos na escola e na faculdade, eles aprendem que tais horrores são
perpetrados nas salas de trabalho científico, pelos mestres e professores que se
espera que eles devam reverenciar e imitar?
Ou como podemos interferir de forma efetiva nas
barbaridades das ruas, quando o bruto carroceiro, o tropeiro, o transportador ou
outro, estão no direito de responder que, não importa o quanto eles possam
maltratar seus animais, eles não chegam nem perto das crueldades dos
laboratórios de fisiologia, os quais têm a proteção integral da lei? Como
podemos pressioná-lo a parar de utilizar algum cavalo velho e sem forças,
alquebrado pela fadiga no serviço do homem, quando o resultado de nossa
interferência caritativa, poderá ser não o descanso merecido de um trabalho
árduo ao longo da vida, nem mesmo a morte rápida sob o golpe de um abatedor, mas
uma longa e horrível agonia em alguma escola infernal de vivissecção, para o
benefício da “ciência”?
Infelizmente, não podemos senão ficar em silêncio,
somente orando em nossos corações que a pobre criatura que sofre maus tratos no
serviço possa antes ser utilizada até que caia morta, do que ser entregue aos
tormentos para terminar sua vida inocente e de serviço fiel nas dores do
inferno. Qualquer coisa não é tão brutal quanto o bisturi, a serra, o ferro
quente e os experimentos nas salas de vivissecção!
Clamamos por justiça! Justiça não só para os animais
inocentes e indefesos, mas para os próprios homens.
A presente lei deste país [Inglaterra, último quarto do
século XIX] é uma lei manifestamente injusta e covarde. Ela ataca os anões e
respeita as gigantes da crueldade. O homem pobre que, no interesse dos seus
meios de subsistência, acidentalmente força demais o seu cavalo ou jumento, é
punido pela mesma legislação que protege o erudito professor que flagela e
tortura ainda vivos uma grande quantidade de animais, e de forma sistemática.
A lei deve ser administrada igualmente a todos os homens,
sejam ricos ou pobres, professores ou leigos, ignorantes ou eruditos. Ou devemos
admitir que não há mal algum em maus tratos aos animais – e, nesse caso, uma lei
que os protege é ridícula – ou o homem que corta um cão vivo em um laboratório
merece punição, tanto quanto o homem que açoita um cavalo na rua, e em tal caso
a lei não deve favorecer a posição social ou o pretexto do primeiro malfeitor às
custas do último. Se a vivissecção deve ser permitida, incentivada e financiada
pelo Estado, então as sociedades para a proteção dos animais contra a crueldade
não têm legitimidade, e devem ser extintas como anomalias ao mesmo tempo
absurdas e ilógicas.
Um bom cristão uma vez me disse: – “Eu nunca poderia
estar feliz nas alegrias do Céu se eu soubesse que outras almas estivessem
condenadas ao tormento eterno. Um tal pensamento como esse tornaria toda a minha
própria felicidade algo amargo para mim.” Bem, isso é algo semelhante ao
sentimento dos anti-vivisseccionistas no que diz respeito aos sofrimentos das
vítimas dos laboratórios de fisiologia e experimentação.
O pensamento aterrador que a cada dia o sol que nasce vai
testemunhar o início de milhares de longos martírios impostos a animais
inofensivos em tantos lugares espalhados pelo mundo que se diz cristão [NT: além
daqueles nas demais culturas]; o pensamento de que todas as noites quando vamos
para nosso descanso, o silêncio da noite irá apenas trazer a esses infelizes
animais prolongado sofrimento, terror e morte agonizante; o pensamento de que
tais coisas acontecem não por acidente ou ocasionalmente, ou por força da
natureza, em longínquos países pouco civilizados, mas aqui, em nosso meio, no
coração de nossas cidades, ao lado, talvez, da nossa própria casa, por ação
deliberada, organizada, sistemática e amparada pela lei – isso é o que corta o
coração, torna a vida amarga e nos obriga à reflexão de que, afinal de contas, a
civilização humana e o progresso humano não passam de sonhos febris, fúteis, sem
sentido e grotescos.
E é por isso que, quando os vivisseccionistas nos
perguntam indignados: – “Que direito vocês têm de se intrometer com as pesquisas
dos cientistas?”, que nós lhes respondemos de volta, apenas com ainda maior
indignação: – “Que direito vocês têm de tornar a terra inabitável e a vida
insuportável para os homens com corações em seus peitos?”
Não é o fato, como os partidários da vivissecção nunca se
cansam de afirmar, de que o público mostrou-se incapaz de julgar as necessidades
científicas, mas sim de que os cientistas têm se mostrado incapazes de
reconhecer as obrigações da moralidade pública.
Se em matéria de fisiológica técnica for algo justo
considerar o público como “profano”, é igualmente correto considerar os
especialistas da vivissecção como “profanos” em relação aos princípios de ética
ou moralidade na conduta. Será que o diploma superior desses pesquisadores lhes
confere o direito a posar como os árbitros exclusivos da ética ou da moralidade?
Ou não é verdade que, sendo eles mesmos indiferentes aos interesses da ética e
da moralidade e incompetentes para lidar com considerações psico-espirituais,
eles supõem que os defensores dessas áreas sejam ignorantes acerca das
exigências científicas e incapazes de compreendê-las, unicamente devido à sua
própria cegueira moral?
Agora, o fato é que a questão é tanto do interesse da
ética ou moralidade, quanto o é de interesse físico.
Se a sociedade está certa em se recusar a reconhecer a
infalibilidade de uma casta puramente eclesiástica em questões que afetam a
consciência pública – como, por exemplo, em matéria de perseguição religiosa –
está igualmente certa em recusar a admitir a hipótese de infalibilidade por
parte de uma casta exclusivamente científica e materialista em questãos que da
mesma forma afetam a consciência pública. Foi enfrentando poderosos interesses
estabelecidos que o mundo rejeitou comprometimento com a Inquisição e com o
tráfico de escravos, e as mesmas considerações que influenciaram os homens
civilizados no trato com essas instituições devem igualmente influenciá-los em
nossos dias, ao enfrentar as reivindicações e os interesses da vivissecção.
É inútil insistir que a maioria dos torturadores modernos
para o bem da ciência são homens educados, inteligentes e eminentes, eruditos
ilustres, professores veneráveis, que são eles próprios os melhores juízes do
que é necessário para a ciência – e que podem, seguramente, merecer confiança
quanto a agirem da melhor forma, e que são pré-eminentemente humanos e
solidários em suas condutas e métodos. Precisamente o mesmo foi dito com igual
veracidade acerca da maioria dos torturadores para o bem da religião. Eles
também eram instruídos, reverendos e eminentes homens de seu tempo, e como os
vivisseccionistas, eram frequentemente membros gentis e polidos da sociedade,
distintos chefes, dignitários de alta importância no Estado. E não há razão para
duvidar de que as atrocidades de que eles eram os ardorosos autores e
concebedores foram instigadas, não pelo amor à crueldade, mas por zelo pela
honra da religião e pelo avanço da igreja, e pelo ardor pelo bem da humanidade.
Todo costume que o mundo já viu, por maior que fosse sua
barbárie, encontrou os seus apologistas, simplesmente por ser um costume.
A história nos mostra que a abolição dos sacrifícios
humanos e de outros tipos em cultos religiosos em seu tempo era denunciada como
uma ameaça para a fé, como uma prova de mórbida sensibilidade e como um sintoma
de decadência. Combates de gladiadores, diversões cruéis e bárbaras de todos os
tipos, anteriormente populares, foram sendo uma a uma suprimidas, mas sempre
diante de protestos clamorosos de pessoas interessadas em sua manutenção. Nenhum
pretexto baseado na suposta utilidade da vivissecção deveria eximi-la da
categoria de prática indigna de uma época civilizada.
O abuso da força é um crime imperdoável e vergonha para
aqueles que reivindicam autoridade despótica, e tentar justificar tais abusos,
representando-o como um meio para atingir um fim louvável é argumentar, como fez
um certo famoso bandido, que tentou desculpar seus atos de violência, dizendo: –
“Se eu cometi o roubo, eu roubei apenas hereges com a intenção de enriquecer os
cofres da verdadeira Igreja”.
A crueldade é sempre cruel, e somente jesuítas e os Paul
Berts se atreveriam a reabilitar o sofisma expresso no axioma eclesiástico: “O
fim justifica os meios”, mesmo quando o “fim” é “progresso científico”, os meios
sendo “sofrimentos dos mais atrozes que a imaginação pode conceber”, e as
vítimas, seres incapazes de se defender ou de vingar os danos sofridos.
Felizmente para a humanidade, os árbitros da consciência
nacional não são nem os eclesiásticos nem os cientistas, mas as pessoas.
Reflito sobre a história da Inquisição, da escravatura e
do despotismo, e fico confiante no futuro!
Existe um evangelho melhor do que aquele da ciência
intelectual, há uma lei maior do que a utilidade física. Não vamos temer,
qualquer um de nós, que por viver à altura do melhor e mais nobre em nós iremos
perder qualquer coisa boa que poderia ter sido nossa graças a meios mais baixos.
O maior inclui o menor, e a ciência Celestial abarca todos os saberes menores.
Apenas busquemos primeiro o reino de Deus e a justiça de Deus, e todas essas
coisas nos serão acrescentadas. Não há nada que o homem justo não possa saber,
pois o espírito nele é divino, e capaz de desvelar todos os segredos em sua
ordem.
Pois o amor é o solvente universal, e o método do amor é
em todos os seus desdobramentos consistente com seu objetivo e sua intenção.
Em conclusão, eu recomendo especialmente aos meus irmãos
da profissão médica aquelas corajosas e dignas palavras que o Dr. Samuel Johnson
dirigiu aos médicos de sua época:
“Que todos os homens de coração que seguem a nobre
ciência da medicina, cujo objetivo é o alívio do sofrimento, possam condenar
publicamente as práticas da vivissecção, pois elas são de uma natureza que
desacredita sua profissão, e irão terminar por extinguir em seus seguidores
aqueles sentimentos que são os únicos que merecem a confiança do público, e cuja
ausência deve ser mais temida do que os piores dos males físicos”.
NOTAS
(1) Artigo publicado na obra Spiritual Therapeutics; or,
Divine Science de W.J. Colville, Educator Publishing Company, Chicago,
1888. 332 pp. (pp. 292-308)
(2) É claro que uso a palavra “espiritualista” em seu significado
real e original, como oposto de “materialista” – p. ex., no que diz respeito ao
universo ter uma base inteligente e espiritual. Não emprego essa palavra como
sinônimo de qualquer outra doutrina particular, além desse significado.
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